sábado, 17 de fevereiro de 2024

Deserto que se faz

O deserto, sendo a mais agreste natureza, é fascinante no silêncio, impressionante para os olhos e poderoso pelos sentimentos que provoca a quem nele se encontra. 

O deserto da Judeia, onde Jesus passou quarenta dias antes do início da sua vida pública, é ainda mais marcante por ser todo ele composto de montanhas a perder de vista, diferentemente do deserto que nos salta à mente, de longas planícies recortadas pelas dunas.

Mas, deserto é deserto! A marca que deixa imprime-se na alma e conduz a experiências próximas de eternidade. A aspereza do deserto e a distância a que o temos, dificultam a experiência nele. Acontece que, graças a Deus, o deserto também pode construir-se, e é necessário que assim seja, por cada um, em si mesmo. Pobres de nós quando não soubermos semear deserto na agitação que nos percorre a vida e em alta velocidade a atira para experiências que não temos tempo de saborear, por não termos o vagar e o tempo, o olhar desperto e o ouvido aberto, para saborear o doce encanto da água que corre no rio e que, deixando nós, lava a alma arrefecida por pensamentos negativos e agressivos; que lima as arestas da pedra em que o ódio transformou o coração. Perdemos a harmonia dos ritmos e sons  com que, em cada momento, a natureza busca moldar-nos. Fechamos os ouvidos com ritmos e sons injetados por pequenos instrumentos eletrónicos. 

Com apressados passos moldamos o corpo e criamos nele o desejo forte de viver muito tempo, esse tempo que não temos tempo de viver, e bem, esse bem que não alcançamos porque ele nasce e cresce a partir de dentro e é fortalecido a partir de fora, na relação confiante e necessária com os outros.

Necessário deserto aquele que me ensina e permite encontrar-me comigo, fazendo-me sentir parte do todo que é a Obra da Criação, mas também alimentando-me a certeza de que sou, somos, muito mais que essa obra criada, por sermos imagem e semelhança do Criador. Se o pecado nos desfeou e fez perder a beleza dessa imagem, a salvação operada por Cristo, possibilitou-nos restaurá-la. Só deixando-nos ser participantes da beleza de Deus, descobriremos o sentido do que somos. Só o deserto, construído, sentido e vivido, permitirá essa participação.